sexta-feira, 8 de março de 2013

O sincretismo de Baden Powell



*Publicado originalmente no blog da revista Piauí http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-musicais/geral/o-sincretismo-de-baden-powell




 Nunca mais esqueci: Teatro Gazeta, aquele violão do Baden ecoando pela sala e a voz grave e  majestosa de Márcia cantando os afro-sambas: Pedra preta diz pandeiro tem que pandeirá /  Pedra preta diz, viola tem que violá / O galo no terreiro fora de hora cantô / Pandeiro foi se embora e pedra preta gritô / Ulô pandeiro, ulô viola / Ulô pandeiro, ulô viola. De estarrecer. Aquela música me transportava para outro tempo, um ritual afro e era como se eu voltasse às origens... Uma beleza religiosa e ancestral. Baden tocando parecia incorporado por uma divindade, ele e o violão, uma coisa só, pulsando, as mãos mergulhadas nas cordas conduziam a gente. Depois de alguns afro-sambas,  foi projetada numa tela a letra de Refém da solidão, em folha de papel escrita à mão por Paulo César Pinheiro, seu autor, numa das incontáveis noites em que ele e Baden beberam, comungaram e criaram canções. Aquela letra me cravou feito punhal. Saí do teatro desnorteada, com a canção rodando na minha cabeça, com o som do violão de Baden reverberando em mim, como seu meu corpo fosse a caixa acústica do seu violão. Seria? Assim fiquei por algum tempo, violando, padeirando, sem rumo... E aquela letra? Era preciso coragem pra escutar aquela canção.

Vinicius de Moraes e Baden Powell compuseram uma série de canções espirituais, os afro-sambas, impregnadas de negritude e misticismo.O primeiro afro-samba foi Berimbau. Em seguida, Canto do caboclo pedra preta e Canto de Iemanjá. Depois disso, conta Vinicius:  “Um disco folclórico que tinha recebido de meu amigo Carlos Coquejo, da Bahia, foi a pedra de toque para darmos partida aos afro-sambas, como os designei. Nele havia sambas de roda, pontos de candomblé e toques de berimbau que nos sideravam. Baden partiu pouco depois para a Bahia e andou escutando in loco os cantares do candomblé e frequentando os terreiros. Voltou a mil, inteiramente tomado pelos cantos e ritos dos orixás, e me explicava horas seguidas os fundamentos da mitologia afro-baiana.”
Desta parceria brilhante nasceram cerca de 50 canções, entre elas algumas românticas como Apelo, Consolação, Deixa, Samba em Prelúdio. Para compor a maior parte delas, os dois ficaram trancados por cerca de três meses no  apartamento da mulher de Vinicius, embebidos em uísque.
No Livro de letras, de Vinicius de Moraes, José Castello fala da parceria do poeta com Baden como um encontro desencontrado, onde a atração entre eles não se dava pela semelhança, mas pela diferença,  pelo encantamento do que é estranho: “Existem encontros que são marcados pela incompreensão. Pelo desencontro. A sedução vem, nesses casos, do mistério. E o que motiva os dois parceiros não é o que encontram de admirável no outro, mas no que o outro  lhes escapa. Abre-se um abismo desde o primeiro instante e é ele, em seu repuxo ameaçador, que seduz. Talvez nenhuma outra parceira de Vinicius de Moraes guarde tantas semelhanças com o desencontro, com a cegueira e o simultâneo excesso de claridade contido numa relação de estranhamento, quanto a parceria com Baden Powell.”

Baden nasceu na cidadezinha de Varre-e-sai,  estado do Rio e ainda menino foi para a cidade do Rio de Janeiro, morando no subúrbio de São Cristóvão. Enquanto isso, Vinicius passeava pela elegante Zona Sul. Modesta e simples, a vida de Baden em nada se parecia com a vida sofisticada do poeta: “Enquanto Vinicius lia Verlaine e se preparava para enfrentar o padre confessor, Baden tocava seu violão em igrejinhas do interior, preocupado com a altura da saia das meninas. E, sempre apavorado pela ameaça do gongo, testava seu talento no programa de calouros de Ary Barroso, um senhor respeitável que não poderia mesmo compreendê-lo. Baden amadurecera ouvindo as cordas macias do violão de Dilermando Reis e só de muito longe perseguindo os acordes mais sofisticados do espanhol André Segovia, o instrumentista que encantava Heitor Villa-Lobos”.

Depois, Baden iria tocar nas noites cariocas, primeiro no Cabaré Brasil, na Lapa. Baden era confuso, tímido, desajeitado e seu primeiro encontro com Vinicius foi um desastre: “Não consegui apertar a mão de Vinicius quando nos conhecemos. (...) Nossas mãos estavam ocupadas com copos.”. A bebida seria uma constante não só nesta parceria, mas na trajetória do grande violonista.
Apesar das diferenças, ambos cultuavam os mesmos artistas: Pixinguinha, Noel Rosa, Dolores Duran, Antonio Maria. Este primeiro encontro desencontrado aconteceu na boate Arpege. Vinicius levou um susto com o imenso talento do artista. Comenta Castello: “Um talento tão intenso que se transformava em convulsão, e o poeta, antenas sintonizadas na beleza em estado bruto (que às vezes é apavorante), sabia não ter medo daquele medo. Os dedos de Baden, essa foi a primeira imagem que Vinicius guardou, saltavam sobre uma nuvem de cordas. Todos os movimentos eram quase imperceptíveis. Não era piano, mas o poeta se lembrou logo de Thelonious Monk (...)”. “ Baden é daqueles músicos tão magnéticos que parecem ter lançado a técnica (e suas obrigações) na lata do lixo. Parecem não ter empenho, ter apenas iluminação.”
Alguns dias depois deste grande susto, os dois se encontraram no terraço do Hotel Miramar, em Copacabana, e aí tocaram juntos pela primeira vez. Não preciso dizer mais nada: eram parceiros. Vinicius arrastou Baden para seu apartamento em Laranjeiras e foi aí que os dois passaram três meses juntos, varando madrugadas, compondo, mergulhados no violão e no uísque. A vida de Baden mudou, virou de pernas pro ar. Até então, ele vivia tocando na noite, tinha apenas uma música gravada, o belo Samba triste, com Billy Blanco. Agora sua vida era invadida pelo ritmo apaixonado da vida do poeta. Depois da fase do apartamento, veio a da clínica: Vinicius estava internado para se recuperar de seus excessos e ligou para Baden, para que ele fosse lá e não esquecesse de levar, além do violão, uma  “garrafinha” de uísque  bem escondida. Mais tarde, Baden diria, gozando desta estória: “A estada de Vinicius na clínica produziu uma excelente safra de composições.”
Baden aproximou Vinicius do mundo do samba de raízes africanas, sem sofisticação. Sua grande inovação foi trazer a música de tradição negra para o universo sofisticado da Bossa Nova . “Baden não apenas africanizou Vinicius, ele o transportou para um mundo mais quente, mais contaminado por tradições e sentimentos atávicos – mais – bem mais incontrolável.”, diz Castello. Assim o poeta aliou o cotidiano com o cósmico, a tradição negra com as questões existenciais da Zona Sul. Falando dos afro-sambas, Vinicius disse: “ Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância, para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe uma dimensão mais universal”.

Em 1963, Baden faz seu primeiro show internacional no Teatro Olympia em Paris e a partir daí vive entre o Brasil e a Europa. Mora um tempo em Paris, depois em Baden-Baden, na Alemanha. Neste  período consolidou sua parceira com o então jovem letrista Paulo César Pinheiro, com quem faria Lapinha, Qua quará quá quá (Vou deitar e rolar), É de lei, Refém da Solidão.
“Paulinho? Paulo César Pinheiro? Por incrível que pareça, eu morava na praça Pinto Peixoto, em São Cristóvão, depois mudei de lá, e muitos anos depois me apareceu o Paulinho lá em Olaria, um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro. Nos conhecemos porque ele era parceiro de um primo meu. Por coincidência total, o Paulinho morava na mesma casa onde eu fui criado. Isso é um negócio do destino. Tinha um festival aqui em São Paulo e nós fizemos a primeira música juntos, foi a Lapinha.Tirou o primeiro lugar e daí começou tudo na vida do Paulinho. Depois eu fui embora para a Europa, mas fizemos muitas músicas”, conta Baden.
A televisão brasileira durante o período de 1965 até 1972 viveu seu grande momento de integração com a música popular brasileira. Programas como O Fino da Bossa, que Elis Regina apresentava semanalmente na TV Record, e Jovem Guarda, apresentado por Roberto Carlos tinham uma grande audiência. Baden participou inúmeras vezes do Fino da Bossa. Era também a época dos festivais. Em 1968, um grupo de prestigiados jornalistas, entre os quais Sérgio Porto, Sérgio Cabral e Lúcio  Rangel, propôs para a TV Record a realização de uma Bienal do Samba. O argumento era o seguinte: o samba, principal gênero da música popular brasileira ficava meio marginalizado nos festivais porque não seguia o padrão das canções que costumavam se apresentar neles. A I Bienal do Samba foi  então realizada. Ela era restrita a convidados escolhidos por uma comissão que tinha o intuito de garantir a presença das grandes figuras da velha guarda do samba. Da I Bienal participaram os veteranos Pixinguinha, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Herivelto Martins, João de Barro, Cartola. A vencedora foi  Lapinha, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, então com 19 anos e estreando como letrista e foi interpretada por Elis Regina. Lapinha é um afro-samba que conta a história de uma figura lendária da Bahia, o capoeira Valdemar de Tal, o “ Besouro” ou “ Cordão de Ouro”.
Nos anos 60, Baden se apresentou no Brasil e na Europa e registrou estes shows em vários discos. Eram gravações ao vivo, sem qualidade técnica, mas que documentam a maestria do violonista e a euforia do público. Na década de 90, voltou definitivamente para o Brasil, com a saúde já debilitada, e ainda assim continuou se apresentando. Baden Powell morreu no dia 26 de setembro de 2000, na cidade do Rio de Janeiro.
Sobre a genialidade e a dimensão do trabalho de Baden Powell, escreveu o maestro Júlio Medaglia: “Se na Europa, nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte alguém for induzido a ouvir Baden pela sedução exótica de alguns de seus afro-sambas, se surpreenderá com a superdesenvolvida técnica de execução instrumental que ilustra aqueles ritmos primitivos. Se outros pretendem encontrar em Baden um curioso representante de um ‘país tropical’, que consegue transpor para um instrumento de cordas as batucadas fantásticas gravadas pelo Museu do Homem, irão se estarrecer mais uma vez com a endiabrada técnica de mão direita de seu violão, que executa complicadas figuras rítmicas inexistentes em nenhuma outra música popular do mundo. Da mesma maneira, irão se surpreender os amantes das canções lineares ao ouvirem um Apelo e identificarem uma melodia quase estática que se valoriza pelo desenrolar do complexo encadeamento harmônico que a suporta. Se outros quiserem, também, conhecer estilizações criativas de material folclórico, como o toque primitivo de um berimbau, deverão ouvir Baden”.


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segunda-feira, 4 de março de 2013

Aos 81 anos de Miriam Makeba

Completaria hoje 81 anos, a cantora sul africana Miriam Makeba. Makeba lançou seus primeiros albuns nos anos 50 na Aáfrica do Sul, misturando ritmos americanos como Blues, com ritmos tipicos de seu país. Mesmo vendendo muitos discos, resolveu se mudar para os EUA pois recebia pouco pelas gravações. Talvez por ser uma cantora negra na época do Apartheid. Sua carreira foi marcada pela luta contra o racismo no mundo, e o fim do Apartheide em seu país natal. 

Miriam Makeba teve uma parada cardiaca em 9 de novembro de 2008, enquanto se apresentava em um concerto, falecendo no dia seguinte, no hospital. 


Abaixo, uma lista de albuns lançados por Miriam Makeba, e vídeos de algumas gravações.

Álbuns

  • Miriam Makeba (1960)
  • The World Of Miriam Makeba (1962)
  • Makeba (1963)
  • Makeba Sings (1965)
  • An Evening With Belafonte/Makeba (com Harry Belafonte) (1965)
  • The Click Song (1965)
  • All About Makeba (1966)
  • Malaisha (1966)
  • Pata Pata (1967)
  • The Promise (1974)
  • Country Girl (1975)
  • Sangoma (1988)
  • Welela (1989)
  • Eyes On Tomorrow (1991)
  • Sing Me A Song (1993)
  • A Promise (1994)
  • Live From Paris & Conakry (1998)
  • Homeland (2000)
  • Keep Me In Mind (2002)
  • Reflections (2004)

Videos

 

Miriam Makeba - Khawuleza 1966

Miriam Makeba - Pata Pata

  

ESSA É UMA POSTAGEM COMEMORATIVA. EM BREVE, UM ARTIGO COMPLETO SOBRE MIRIAM MAKEBA.

 


quinta-feira, 12 de abril de 2012

De sambista a comediante; Mussum e Os Originais do Samba


                 


                Formado por ritmistas de escolas de samba do Rio de Janeiro, Os Originais do Samba era o que podemos chamar, um “precursor do pagode”. Pagode no sentido original da expressão; aquele típico samba descontraído e descompromissado de boteco. Após uma turnê no México, se fixaram em São Paulo, onde ficaram de vez. Dividindo palco com grandes ilustres da música brasileira, de Elis Regina (Lapinha; música de Baden Powell e Paulo. C. Pinheiro), a Jorge Bem (Cadê Tereza), os Originais tinham a irreverência e o humor como marca. E quanto a esse humor, um de seus integrantes, Antônio Carlos Bernardes Gomes, acabaria mais famoso, não  como músico, mas como humorista. Me refiro ao eterno Mussum!
            A naturalidade de Mussum para o humor já era evidente nos Originais do samba. Embora nas performances musicais sua participação não fosse muito expressiva, seu carisma cativava o público. Nas entrevistas era ele quem tomava a frente, contando a história do grupo, casos curiosos, composições, sempre com uma piada na ponta da língua. Em 1969, é convidado para participar como integrante dos Trapalhões, quando Wilton Franco o convida após assistir um espetáculo dos Originais.
            Por coincidência  , Mussum já havia participado por uma temporada em um programa humorístico chamado Bairro Feliz, de onde surgiu seu apelido, presenteado pelo próprio Grande Otelo, relativo a um peixe, (escorregadio e liso, já que conseguia facilmente sair de situações estranhas). Nos Trapalhões, Mussum  fazia papel dele mesmo. Ou melhor! Uma sátira dele mesmo! Um “beriteiro”, “negão”, “malandro”... suas piadas geralmente era ligada a sua condição de negro, ou sobre bebida. Era o politicamente incorreto. Algo difícil de ver na TV hoje em dia.
            Os Originais do samba continuaram (e continuam) sua carreira repleta de composições próprias e regravações de grandes canções da música brasileira. Em 1997, o grupo completou 30 anos de carreira e comemorou lançando um CD pela gravadora RGE, Os Originais de todos os sambas, contando com uma nova formação. Depois de muitos integrarem o grupo, atualmente é formado por Bigode do Pandeiro(pandeiro e voz) Junir (reco-reco e voz) Kiko (agogô, tantam e voz) Scooby ( cavaco e banjo) e Rogério Santos (violão e guitarra). 
 
 
 
 Apresentação e entrevista do Originais do Samba na TV Cultura; 
o carisma de Mussum
 

O grande clássico do grupo


                 Wikipédia/ Os Originais do Samba
                 Wikipédia/ Mussum
 
 

segunda-feira, 12 de março de 2012

Quadrafônico, o “baião psicodélico” de Alceu Valença e Geraldo Azevedo

Imagina um bar com música ao vivo em plena Recife no final dos anos 60. Um homem de cabelos longos e voz serena toca seu violão para o público, mostrando algumas de suas composições. Alguns descompromissados apenas bebem com seus amigos, destraídos com a música. Outros ficam no bar, pela música. Querendo sentir algo diferênte do que uma vitrola pode oferecer. Mas entre eles, existe uma pessoa especial. Um músico, também de cabelos longos, que assiste ao show até o final, como quem assiste a uma aula. Este é Alceu Valença, no momento em que conhece Geraldo Azevedo; aquele músico de voz suave tocando no bar. Esse encontro selaria uma amizade que gerou o album “Quadrafônico”. Esse disco foi o trabalho que norteou a carreira desses dois grandes músicos brasileiros.
           
           


 Gravado em 1972, Quadrafônico foi a primeira parceria de Alceu Valença e Geraldo Azevedo. O carater totalmente experimental transita pelo rock, passando pela musicalidade nordestina, mas sem perder a sutileza sonora. A primeira faixa (me dá um beijo), por exemplo, tem uma levada meio jazz, com uma sutileza de “nordeste” no desenrolar da música. Na música Virgem Virginia, um belo arpejo de violão inicia a música, seguido da voz suave de Azevedo. Mster Mistério mostra o lado mais psicodélico do disco. “Novena” tem uma levada de baião, com um belo coro feminino que lembra uma “reza”. “Planetário” – uma das músicas mais loucas que já escutei – em rítmo frenético, revela a voz “escandaloza” de Alceu. “Cordão do Rio Preto” vai da ciranda ao frevo, lembrando os carnavais pernambucano. Todas as músicas oferece um toque experimental com todos os recursos musicais que o nordeste e o mundo oferece. É raiz e cosmopolita! Uma obra genuína!

Para compreender mais a riqueza dessa obra, só escutando mesmo...